Boca cheia e afeto à disposição

ALMA
6 min readNov 30, 2022

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Comerciantes localizados próximos à UFMS se sentem parte da comunidade acadêmica e acolhidos por estudantes

A Cidade Morena amanhece no fervor dos 30 graus e o sol segue mostrando sua força durante todo o dia. Em um canto da capital, entre os bairros Pioneiros e Vila Albuquerque, os e as comerciantes da região se preparam para mais um dia de trabalho. Com muito sol ou em plena ausência dele, o trabalho não espera. A região é movimentada e com trânsito quase interminável de veículos na avenida Costa e Silva. A vida no bairro pulsa quase na mesma intensidade que o movimento de carros, motos e caminhões nas ruas.

A rua possui uma única certeza, a de que ela leva a algum lugar. Aqui, a rua Rui Barbosa é responsável por cruzar as histórias de Grazi, Luizão, Diane e Oberdan. Os quatro compartilham a rua, o bairro, e a paixão pelo que fazem. O geladinho do caldo-de-cana na boca, a mordida no lanche feito com amor e o calor humano de uma sexta-feira cheia de vida são algumas das pequenas alegrias da vida adulta que jovens universitários encontram nos arredores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). As ruas de Campo Grande se movimentam com o fluxo de trabalhadores e criam a sinfonia universitária de quem respira ares de futuro.

“Aqui que toma caldo”

O ritmo do moedor de cana-de-açúcar molda a sinfonia da casa de Luizão. Luiz Augusto de Oliveira, de 63 anos, é conhecido como Luizão da Garapa. Ele mora em frente à UFMS e todos os dias estaciona seu carrinho de caldo-de-cana na esquina onde começa a Rui Barbosa. O expediente costuma começar às nove horas da manhã, mas às quatro ele acorda e já vai para a sombra em que costuma ficar para varrer as folhas caídas da árvore que o acolhe diariamente. “Na quadra de cima, todo mundo me conhece, eles vêm tomar caldo. Eu sou bem quisto, a gente tem que estar sempre assim tendo essa harmonia. A vizinhança é a coisa mais interessante que tem”.

Luizão é pai de seis, avô de três e bisavô de um. Ele, a companheira Olinda e os familiares são fãs da garapa geladinha, apesar da diabetes pedir cautela na bebida. A casa da família possui muros coloridos pelos grafites de artistas locais e gramado extenso para o cachorro Peludinho correr. Na varanda, há uma comprida mesa de madeira, cadeiras de amarração e paredes azuis acolhedoras. Enquanto Luiz conta sobre sua trajetória, a filha mais nova, Luiza, de 12 anos, acompanha a história e acrescenta detalhes que o pai deixou passar.

No serviço, o campo-grandense gosta de conversar com cada um que passa. Ele conta que quando passa dias sem estacionar o carrinho na rua, as pessoas do bairro sentem falta. “O pessoal percebe e já fala ‘Luizão tá lá, Luizão tá lá’. Todo mundo vai chegando, vai sentando e conversa alguma coisa. É animado aquilo ali, super animado. A maioria do pessoal é conhecido, e os que não conheço, passo a conhecer”.

O garapeiro é ostomizado desde 2005, após ter um tumor no estômago. Após várias cirurgias, Luizão precisou passar por um lento e doloroso processo de recuperação e que se mostra contínuo até os dias de hoje, já que ele não pode realizar funções que forcem muito o corpo. “Ah, o trabalho a gente não pode deixar de fazer. Isso aqui para mim é interessante porque não força a ostomia”. Ele, a bolsinha e a garapa seguem firmes sem desanimar.

Luiz defende que “tem que tratar o cliente com carinho”. O problema dele são as abelhas que o rodeiam. “A garapa é interessante, guria, as abelhas lá ficam nervosas. Em um dia, me pegaram três vezes”.

“Isso aqui é a minha vida”

A cozinheira Graziele Soares dos Santos, de 45 anos, sonhava em ter seu próprio negócio. Após anos trabalhando na Santa Casa, decidiu que levaria seu sonho para frente, mas o universo e a vida traçaram outros planos para ela. Após falta de pagamento, lidar com agiotas que cobraram uma dívida que não era dela e até sofrer com a repressão policial, Grazi, como é conhecida, conseguiu seu cantinho e criou uma família apaixonada pelo ambiente criado pela mineira. O Bar Batata + é o xodó dos estudantes da UFMS e a Grazi garante que gosta “demais deles, para mim eles são filhos”.

Desde 2007 Grazi luta pelo seu cantinho e foi em 2010 que ela viu na universidade a oportunidade de criar uma comunidade em torno de seu bar. “Fomos trabalhando, trabalhando e trabalhando até que chegou em um patamar que eu enxerguei os estudantes, e ninguém enxerga eles”. No começo da parceria, Grazi oferecia desconto no litrão para estudantes que fossem associados nas atléticas, o que tornou o Batata + o Bar das Atléticas. Hoje, às sextas-feiras o bar ainda recebe as atléticas, deixando que elas vendam bebida para bancar as atividades. “Nós temos que andar juntos, eu não posso pensar em só ganhar. A vida toda eu pensei na atlética e a atlética pensou em mim. Me sinto parte da UFMS”.

“Eu estou feliz, me sinto realizada [com essa relação]. Eu sou mãe mesmo, aqui é a casa deles, não tem limites. Eles entram na cozinha, entram no caixa, eles entram onde eles quiserem”. O novo desejo de Grazi é criar a Sexta Cultural, para ampliar os momentos de lazer dos universitários e também proporcionar acesso à cultura para moradores e moradoras do bairro. No projeto, a Sexta Cultural fecharia a rua do bar e traria artistas locais para fazer com que a resenha do final de semana não fosse interrompida pela violência policial.

“Cada um deixa uma sementinha”

Diane Rodrigues e Oberdan José Vasata estão juntos há 16 anos e do amor do casal nasceram quatro crianças e um food truck. Em homenagem aos dois filhos mais velhos, João Pedro e Isidoro, os pais abriram um negócio de lanches sobre rodas e batizaram de “Two Brothers”, que do inglês significa dois irmãos. Depois vieram as meninas, Cecília e Helena, que são os grudes da mãe. A família está sempre unida e, como o restaurante fica na parte da frente da casa, as crianças estão sempre por perto enquanto a mãe e o pai trabalham. João até participa na parte do atendimento e Oberdan agradece pela presença do filho nesses momentos.

“Quando a gente brincava de fazer hamburguer”, relembra Oberdan do início da trajetória do casal. “O João Pedro é autista e ele sempre teve problema quando a gente saia [de casa], porque as pessoas fazem muito barulho e para a gente não fugir da rotina do dia a dia, compramos uma máquina de moer carne e começamos a fazer para nós mesmo, aí os amigos falavam ‘ó, porque vocês não investem’, mas a gente achava que não ia dar certo”, explica Diane.

Oberdan é administrador e Diane sempre teve o espírito do comércio em si. “Eu sempre tive mão boa para comida, já veio de genética. Minha mãe era boleira e tudo mais que você pode imaginar”, conta Diane, a cozinheira de mão cheia da casa. Em 2014, a coragem brotou neles e levaram adiante a ideia. O Two Brothers nasceu peregrino, mas escolheu a Rua Júlio Anffe para estacionar, em 2018.

“Eu gosto muito, são pessoas novas e cada um que passa agrega alguma coisa para a gente, de conhecimento e de vivência, cada um deixa uma sementinha”. Diane relembra de estudantes que passaram pelo Two Brothers e fizeram a família se sentir acolhida. Poliana, fisioterapeuta, ensinou Diane a fazer massagens relaxantes nas crianças; Pedro, artista visual, ajudou com as redes sociais e estudantes de medicina cuidaram várias vezes de Cecília, a primeira menina do casal. “São vários cursos [na UFMS], então a gente pega um pouquinho de cada coisa”.

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Entre garapas, lanches na chapa e litrões de cerveja, a vida pulsa ao redor da universidade. O gosto de gente com sede de descoberta desperta em quem se fixa entre o Pioneiros e a Vila Albuquerque a vontade de ficar. Ou de ir, mas levando um pouquinho na mala, no coração e na boca. Não há boca vazia, seca ou mal alimentada. Nem falta de carinho. Aqui: boca cheia e afeto à disposição.

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ALMA

me entendo na poesia; sou coletiva no jornalismo; loucuro-me na fotografia